terça-feira, 3 de agosto de 2010

Cargas ao mar

Por Lígia Bahia¹

Temos evitado conversar sobre o presente do Sistema de Saúde brasileiro. Ora atribuímos a falta e mal uso de recursos à herança de desigualdades estruturais, ora projetamos soluções para um indefinido futuro promissor, no qual o desenvolvimento econômico e tecnológico saneará todos os problemas. Na ausência de um piso cronológico ajustado ao cotidiano, supomos que as reiteradas imagens de caos em hospitais públicos, filas em unidades ambulatoriais e as notícias sobre corrupção são sempre as mesmas. A sensação de que nada teria mudado e a alternância de estados de profunda indignação com resignação justificam duas saídas aparentemente opostas, ambas imediatistas: a adesão a planos privados de saúde e a ênfase na assistência pública de urgência nas grandes cidades. Assim a distorção da apreensão dos atuais vetores de mudança termina por reforçar e consolidar políticas de saúde pontuais e de curto prazo.  

Mesmo o alentado sucesso de políticas universais, alicerçadas em uma rede integrada de ações a serviços e tal como ocorre na prevenção e tratamento de HIV/AIDS e vacinação, e a cessação de denúncias de corrupção no Ministério da Saúde, antes saqueado por vampiros e sanguessugas, competem em desvantagens com as concepções que insistem em reduzir a saúde a um conjunto de demandas eventuais por serviços de saúde e política exclusivamente à gestão.

Com meros consumidores de serviços de saúde, hipoteticamente estratificados pela renda, deixamos de atentar para a renovação dos dispositivos políticos, tributários, creditícios e para os gastos públicos diretos que estão por trás dos intricados arranjos assistenciais brasileiros, que mesclam público e privado. Basta lembrar que as unidades privadas, hoje consideradas excelentes, são povoadas por profissionais que trabalham simultaneamente em universidades públicas.

Sempre foi assim? Sim e Não. Deve-se consignar a preservação da tradição dos consultórios particulares de catedráticos de medicina. Também o aporte direto e indireto de recursos públicos para o setor privado não é novidade. Mas seria equivocado omitir duas importantes alterações. A partir dos anos 1990, alguns hospitais gerais públicos perderam status de melhores do país e o atual circuito financeiro de acesso aos privados passou a envolver necessariamente a intermediação dos planos de saúde.

Essa inversão dos sinais de qualidade se reforça continuamente. As convocações dessas mesmas organizações para sanear problemas de gestão estatais lhes acrescem recursos públicos e legitimam. Há pouco tempo atrás, o papel de fronteira tecnológica era dos universitários públicos. Hoje, as principais plataformas de incorporação tecnológica assistencial são privadas, ou na realidade, filantrópicas.

O que mudou? As vinculações entre as indústrias e empresas distribuidoras de medicamentos, equipamentos e insumos, com a premiação direta dos médicos que os recomendam e os benefícios para os responsáveis pela compra, não são tão recentes. Mas a intensificação do uso de meios diagnósticos e terapêuticos, a interveniência de terceiros para autorizar procedimentos e calibrar preços e o enfraquecimento do tônus institucional público estimularam e disseminaram a cobrança “por fora’, cuja conotação é bem diversa. O imenso mal-estar causado pelo envolvimento com práticas tidas como degradantes, mas toleradas, é agravado por políticas de saúde – executadas com “leveza” de gestão -, dedicadas ao atendimento de eventos.

O afã de deitar ao mar cargas supostamente pesadas não poupou hospitais universitários, elementos estratégicos `a pesquisa, formação de pessoal e modulação da intervenção da inovação tecnológica.

Os fluxos de alocação de recursos orientados apenas pela obtenção de maiores taxas de retorno e pelo rentismo não se coadunam com as necessidades de articular saúde e desenvolvimento social e distribuir de forma justa seus encargos financeiros.

As perspectivas de conectar a compreensão do processo de saúde e doença, como continuum, e não eventos isolados, com políticas sistêmicas e “desmercadorizadas” requerem enquadramento em horizontes temporais de médio prazo, incluindo a garantia de custeio dos projetos para além dos mandatos dos governos que os inauguram.

Acabamos de saber que será um novo hospital universitário para a UFRJ e assistimos a bem-vinda instalação de institutos especializados públicos em São Paulo e no Rio de Janeiro.

Um deles funcionará no antigo prédio do “Jornal do Brasil” na Avenida Brasil. Oxalá a inspiração no compromisso do velho “JB” com o público nos leve adiante.


¹Ligia Bahia é professora de Economia da Saúde na Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: ligiabahia@gmail.com

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