sexta-feira, 16 de julho de 2010

O cartão que virou cartolina

Fonte: CEBES

O projeto do governo federal para criar o cartão eletrônico do SUS consumiu R$ 418,6 milhões sem produzir benefícios para os pacientes.



Um programa lançado há dez anos pelo governo federal prometia modernizar o atendimento da rede pública de saúde, reduzir filas em hospitais e facilitar o planejamento do setor. Uma das principais inovações do programa seria a criação de um cartão magnético nacional para os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). O cartão daria acesso em tempo real a informações sobre o atendimento prestado a cada paciente desde o nascimento. Teria registros de consultas, exames e da medicação prescrita durante toda a vida. Ambiciosa para seu tempo, a ideia se mostrou cara e inviável diante de obstáculos impostos por diferenças regionais, suspeitas de fraudes em licitações e resistência dos profissionais da saúde. O que deveria melhorar a vida dos brasileiros se transformou em um caso explícito de desperdício do dinheiro público.


Entre 2000 e 2009, o projeto consumiu R$ 418,6 milhões. Os primeiros gastos para a implantação do cartão magnético começaram em 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o ministro da Saúde era José Serra, hoje candidato do PSDB à Presidência da República. E foi mantido por todos os ministros que lhe sucederam, nos governos FHC e Lula, até o atual, José Temporão. No coração do programa, o Ministério da Saúde selecionou 44 cidades em 11 Estados, 31 delas no Paraná, para participar do projeto piloto. Empresas foram contratadas para desenvolver e colocar o sistema em funcionamento, emitir cartões magnéticos, treinar funcionários e fornecer terminais de atendimento, chamados de TAS. O atendimento era estimado em 13 milhões de usuários na primeira fase.


Uma das intenções dos gestores federais era montar um cadastro nacional dos usuários do SUS, um gigantesco banco de dados com o perfil da saúde de quase toda a população brasileira. Serviria também como uma câmara de compensação financeira para que os repasses de dinheiro fossem feitos para os municípios de acordo com os atendimentos, e não proporcionalmente ao número de habitantes, como é hoje. A partir de 2001, o ministério distribuiu 10 mil terminais de atendimento e contratou serviços para o treinamento de 13 mil funcionários públicos.


A capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, foi uma das cidades escolhidas para o projeto piloto. A prefeitura da cidade desenvolvia, havia sete anos, um cadastro único dos usuários do SUS, e o governo federal resolveu aproveitar a experiência. Em setembro de 2002, Campo Grande recebeu do Ministério da Saúde uma remessa de 500 mil cartões magnéticos e 200 terminais de atendimento. Passados oito anos, os terminais estão estocados numa sala da Secretaria de Saúde da prefeitura. Não se sabe quantos usuários da cidade ainda mantêm os cartões. Os documentos ainda existentes, embora eletrônicos, têm a mesma função de um cartão de papel, pois não há equipamentos que façam a leitura.


Situações semelhantes se repetem nas outras cidades onde o sistema foi testado. Hoje, os 10 mil terminais entregues pelo ministério viraram sucata. A defasagem tecnológica impede o aproveitamento futuro dos equipamentos. O treinamento realizado com 13 mil funcionários públicos se perdeu, e o governo federal não consegue sequer calcular quantos cartões foram emitidos. Todo o investimento feito no programa teve como único resultado um banco de dados com nomes de usuários recolhidos dos arquivos do PIS-Pasep da Caixa Econômica Federal e informações enviadas pelas secretarias de Saúde estaduais e municipais.


O programa do Ministério da Saúde teve problemas desde o início da tentativa de implantação. Uma licitação internacional escolheu as empresas Hypercom e Procomp para desenvolver o sistema e fornecer os equipamentos. Suspeitas de direcionamento da concorrência chegaram ao Ministério Público Federal, a partir de denúncia enviada em maio de 2001 pelo gabinete do então ministro José Serra. O MPF acionou os procuradores que atuam no Tribunal de Contas da União (TCU). O TCU não abriu uma investigação, com a justificativa de que era preciso resolver antes um processo judicial em que um dos consórcios derrotados na licitação questionava o processo. A pendência tramita até hoje nos tribunais. Em todo esse tempo, o ministério continuou a fazer repasses financeiros para o programa.


À medida que o sistema era implantado, começaram a surgir outros entraves. As empresas deveriam desenvolver programas de computador para interligar as diversas unidades espalhadas pelas cidades do projeto piloto. Esse trabalho não foi realizado como deveria. De acordo com o Ministério da Saúde, os problemas decorreram principalmente de questões de infraestrutura, como deficiências de redes elétricas e de transmissão de dados. ÉPOCA teve acesso a uma apresentação em PowerPoint do Ministério da Saúde, feita em janeiro deste ano, com outras razões do fracasso. De acordo com o documento, a expansão do serviço não foi planejada, a emissão de cartões centralizada pelo ministério não funcionou e houve incapacidade de integração das unidades do sistema.


“Os terminais foram um presente de grego”, diz Sônia Maria Machado, da gerência de tecnologia da informação da Secretaria de Saúde de Santa Catarina. Segundo Sônia, houve uma tentativa de devolver os TAS enviados para Florianópolis, uma das cidades do projeto piloto, mas o ministério não os recebeu de volta.



Uma auditoria realizada pelo TCU descreve que o sistema do cartão do SUS “se transformou apenas num cadastro de usuários e seus domicílios”. O banco de dados não garante ao cidadão o registro de todas as informações do atendimento que lhe é prestado na rede de saúde. O TCU conclui que houve desperdício de recursos públicos. Os auditores da Controladoria-Geral da União também realizaram inspeções no Departamento de Informática do Ministério da Saúde, o Datasus, e identificaram problemas semelhantes.



O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) produziu no ano passado um diagnóstico sobre o cartão do SUS. Segundo o documento, houve resistências dos profissionais da saúde, principalmente dos médicos, que reclamaram de dificuldades na operação dos equipamentos e do aumento de trabalho em decorrência da necessidade de lançar dados em dois sistemas, o antigo e o novo. “As características locais e a falta de tecnologia mais avançada travaram o processo”, diz a coordenadora do cartão do SUS da Secretaria de Saúde de Campo Grande, Luzia Alencar, que participou de reuniões no ministério da saúde.


2 comentários:

  1. Matéria interessante...
    A saúde infelizmente ainda é tretada como descaso...
    Nós não nos mobilizamos de tal forma que possaamos garantir nossos direitos...
    Contudo existe a perseverança o desejo de mudança, de dias melhores, de uma contrução de sociedade que queremos..
    mobilizAÇÃO...
    parabéns pela matéria.
    Keury Rodrigues
    Enfermagem

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  2. Pois bem, muitos médicos que deveriam fazer os relatórios saíram de universidades públicas, alguns, inclusive, brigaram por uma saúde melhor nos tempos de universidade, agora simplesmente param de batalhar. Isso é o que chamamos capitalismo. Bela matéria: BI C&T

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